quarta-feira, 20 de agosto de 2014

O Estado Teocrático

A versão moderna dos Tribunais da Inquisição, o controle do corpo alheio, a aceitação implícita do estupro e a homofobia como bandeira. O que torna tão exemplar e perigoso o ressurgimento da ditadura moral/religiosa? Desde que o deputado extremista Feliciano assumiu a CDH o país tem assistido a uma perigosa e bizarra perseguição aos direitos constitucionais de cidadãs e cidadãos. Houve outras manifestações antes, de Bolsonaro, Mirian Rios (a ex- de Roberto Carlos), que não tinham o peso da presidência de uma comissão estratégica para a garantia de direitos. A ferocidade com que o deputado lida com mulheres, gays, lésbicas, índios e negros ultrapassa as bandeiras religiosas que defende e alerta para outro patamar: A disputa da hegemonia política não por uma classe ou partido, mas por uma visão de Estado teocrático aos moldes adotados pelo catolicismo a partir da alta idade média e por alguns Estados fundamentalistas muçulmanos, como o Estado sionista de Israel ou mesmo o Estado católico Vaticano, detentor inclusive de assento na ONU. Feliciano é intransigente em sua ofensiva a pessoas com orientações sexuais, despreza e contesta qualquer avanço relativo aos direitos da mulher. Declarado racista, é indulgente com o estupro, e empenha-se no que podemos chamar de “nova cruzada santa”. Esta ofensiva não pode ser vista como simples objetivo de moralização e repressão, muito menos de exercício de sua orientação religiosa. O que está em jogo vai muito além do simples preconceito. A história nos mostra que tabus são construções culturais de cada sociedade acerca do permitido e do não permitido. O que hoje nos estarrece, como o incesto, era usual no Egito. Nossas avós casavam aos doze, treze anos, tornando-se logo mães. Na Grécia era usual e recomendada a iniciação de jovens púberes por homens mais velhos. A mudança de paradigmas foi instalando-se gradativamente, na medida em que o ser humano avançava em sua compreensão de sociedade. Entre avanços e recuos, da antiguidade à era contemporânea, diferenças sempre foram usadas como instrumento de opressão. O monoteísmo hebreu foi responsável pela imposição de costumes e restrições no ocidente e oriente médio. A autoridade terrena mesclada à autoridade divina tornaram estas imposições incontestáveis. A união heterossexual foi legitimada por ser capaz de gerar filhos para “crescer e multiplicar” (ou, na versão protestante, frutificar, entendido aqui como progresso material). Isto incluiu a masturbação como ofensa divina. Segundo a Bíblia, na Gênese, Onan (daí o termo onanismo) “desagradou a Deus, jogando seu sêmen ao chão”. Entendível, em tempos de baixa expectativa de vida e alta mortalidade infantil, e provavelmente a primeira tentativa de controle de natalidade, também proibido pela quase totalidade das igrejas cristãs. O prazer sexual passa a ser cada vez mais direcionado para a reprodução, e a opressão da mulher aumenta em relação direta com a opressão popular. Na alta idade média, quando o império romano divide-se para dominar os povos da Europa e Ásia, formata-se a Igreja Católica. A produção de dogmas, a criação das Bulas Papais regulamentando pecados e práticas inclui o pagamento do dízimo, o controle religioso sobre o político e o enriquecimento da Igreja. O surgimento dos tribunais da Santa Inquisição tornaram as práticas sexuais entre pessoas do mesmo sexo crime, relacionado à possessão demoníaca. Posses dos condenados eram revertidas ao denunciante e à Igreja. E assim, esta sociedade oriunda da fusão das duas engrenagens opressoras, apoderou-se do prazer alheio. Pior do que isto: convenceu, através da religião, os povos por eles dominados de suas certezas. Relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo foram reprimidos, proibidos, estigmatizados mesmo com o avanço da sociedade em relação a outros temas. A influência religiosa do cristianismo é fato inconteste em nosso país. Dados do Censo Demográfico 2010 mostram que a população evangélica no Brasil passou de 15,4% da população brasileira para 22,2%, o que dá um crescimento de 6,8 pontos percentuais nos últimos dez anos, e atualmente representa 42,3 milhões de fiéis. Os católicos ainda são maioria, mas o diferencial se dá na frequência e prática. Grande parte dos autodeclarados católicos não frequentam igrejas e só participam de rituais extraordinários: Casamentos, batismo, missas comemorativas ou fúnebres, enquanto a participação de evangélicos mostra alto índice de assiduidade. Sem um poder centralizado, cada igreja evangélica é um núcleo isolado. Cada fragmentação ou dissidência produz uma nova igreja, com novo pastor, novas regras e imposições. Ainda segundo o IBGE existem 188.498 casas ou templos evangélicos no país, sendo que cerca de 2/3 deles pertencem aos dez maiores agrupamentos. NR Grupos Evangélicos Total Homens Mulheres 1° Igreja Assembléia de Deus 12.314.410 5 586 520 6 727 891 2° Igreja Evangélica Batista 3 723 853 1 605 823 2 118 029 3° Igreja Congregação Cristã do Brasil 2 289 634 1 060 218 1 229 416 4° Igreja Universal do Reino de Deus 1 873 243 756 203 1 117 040 5° Igreja Evangelho Quadrangular 1 808 389 774 696 1 033 693 6° Igreja Evangélica Adventista 1 561 071 704 376 856 695 7° Igreja Evangélica Luterana 999 498 482 382 517 116 8° Igreja Evangélica Presbiteriana 921 209 405 424 515 785 9° Igreja Deus é Amor 845 383 365 250 480 133 10° Igreja Maranata 356 021 156 185 199 835 Dados do IBGE Senso 2010 Atingindo as camadas mais humildes da população, mais desassistidas por políticas públicas, as ditas quadrangulares ou neopentecostais encontraram no discurso da moralidade e da salvação um terreno fértil. O alarde promovido pela mídia acerca da insegurança, da dissolução da moral, o aumento real da violência e da drogadição cai como luva para quem convive com a omissão do Estado. Mas tem seu preço: A rigidez na conduta dos membros, o que passa necessariamente pela demonização do prazer, pelo recrudescimento à opressão da mulher e pela aceitação da necessidade destes sacrifícios para garantir a manutenção da estrutura formal familiar. E, claro, ter acesso ao paraíso. Mas são tão diferentes entre si que as regras de cada igreja raramente são comuns. Divergem no básico, como permissão ou proibição de uso de calças para mulheres, cortes de cabelo, algumas proíbem televisão, outras possuem uma rede, algumas aceitam o divórcio para posterior matrimônio, outras não. Finalmente, algumas igrejas evangélicas (poucas) permitem a união homoafetiva, com atividades e grupos voltados para este segmento, o que inclui a celebração da união. Outras condenam, embora aceitem membros homossexuais, e por fim, há as que fazem do tema uma nova caça às bruxas. Não por acaso circula nas redes um abaixo-assinado de 150 pastores de diversas igrejas evangélicas, pedindo a saída de Feliciano do ministério. Inclusive assinam o documento alguns pastores de sua igreja, a Assembleia de Deus. O deputado, porém, não representa a totalidade da comunidade evangélica. Talvez por não conseguir controlar sua fúria homofóbica, racista, machista e autoritária, afastando fiéis mais racionais e generalizando as neopentecostais como reacionárias e fundamentalistas. Sua prática tem se demonstrado um recuo aos tempos medievais. Perigosamente, tenta instalar um novo tribunal da inquisição nos moldes possíveis no século 21. Lidera, efetivamente, uma nova cruzada aos infiéis, trazendo de volta temas já superados, como o Estatuto do Nascituro, a Cura Gay, a banalização do estupro, a inconcebível fala sobre a fúria divina contra o Continente Africano. Mas o que ele deixa evidente em sua atuação é o desejo de tornar-se o controlador do afeto, do amor e do prazer alheio, provavelmente por sua incapacidade emocional. As medidas propostas por Feliciano combinam com sua declaração sobre a necessidade de crescimento político de políticos evangélicos, e sua ameaça velada sobre a eleição de 2014. Sem delírios paranóides, podemos nos preocupar seriamente com o risco de acordarmos um dia sob a tutela de um novo Estado Teocrático fundamentalista evangélico e o fim das liberdades individuais.

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